
Documentos registram a exploração da mão-de-obra escrava por suíços no Brasil Colônia. Crédito Foto: Denise Bertschi/Divulgação EPFL.
A partir da primeira metade do século 19, muitas famílias burguesas da Suíça estabeleceram-se na Bahia. Em áreas que pertenciam aos indígenas, desmatam o solo, exploram as terras e desenvolvem uma das maiores plantações de café do estado. O trabalho é realizado por homens, mulheres e crianças transportados à força do continente africano e escravizados. O lucro foi tal que, logo após a sua criação, em 1848, a Confederação Suíça nomeou vice-cônsules locais, eles próprios comerciantes de escravos e proprietários de terras. Sua função era administrar a plantação, chamada “Colônia Leopoldina”.
Nas revoltas dos escravos, os vice-cônsules protegem as plantações pertencentes às famílias suíças criando vínculos diplomáticos com as autoridades brasileiras. Eles também mantêm atualizado o inventário dos bens dessas famílias, que podem chegar a 200 pessoas com até 2.000 africanos escravizados. Estes últimos aparecem no inventário com o seu nome, a sua idade, o seu estado de saúde. Os vice-cônsules também lhes atribuem um valor. Essa atuação direta da jovem Confederação em contexto colonial estendeu-se até 1888, data da abolição da escravatura no Brasil.

Numa abordagem que liga a história da arquitetura, a cultura visual e a criação artística, a artista Denise Bertschi interessou-se pelos vestígios deixados por essa presença suíça em solo brasileiro, tema de sua tese de doutorado, resultado de uma pesquisa financiada pela HEAD Genebra, uma conceituada escola de arte e design com sede em Genebra, e pela Escola Politécnica Federal de Lausana (EPFL), prestigiada universidade pública suíça criada em 1853. “Meu objetivo foi mostrar o impacto de longo prazo desse episódio colonial que até hoje redefiniu as paisagens brasileira e suíça”, explica. A defesa pública desse tese de doutorado acontece no próximo dia 27 de junho na EPFL. Como artista, Denise Bertschi complementou sua pesquisa científica com obras de arte que revelam vestígios da colônia. Ela as exibirá em setembro próximo, no Museu Nacional Suíço de Zurique, capital da Suíça, como parte de uma exposição mais ampla intitulada “Colonial. As conexões globais da Suíça” e no Centro de Artes de Neuchâtel, capital do estado suíço de mesmo nome.
Revelando o invisível
No início da investigação surgiu uma questão: como abordar essa parte enterrada da história suíça, que muitas vezes fala de “colonialismo sem colónias”? Como tornar tangível esse acontecimento que prova, pelo contrário, o papel ativo da Confederação no colonialismo? Em 2017, Denise Bertschi visitou duas vezes o Quilombo Helvécia para colher depoimentos de descendentes afro-brasileiros. Ela os encontra ainda assombrados por uma memória de violência. Guiada por eles, filma o porto de onde desembarcaram os africanos escravizados, seu cemitério, que apresenta lápides destruídas, ilegíveis. Visita a casa onde os escravos eram espancados. Lugares hoje quase cobertos pelo mato alto. A produção de café deu lugar à exploração intensiva do eucalipto a partir da década de 1940. Nos fundos da vila, é possível ler “Bem-vindo a Helvécia” numa placa patrocinada pela empresa Fibria, hoje Suzano. Placa de rua BEM VINDO A HELVÉCIA na entrada dos fundos da vila Quilombo Helvécia. A placa é patrocinada pela empresa de eucalipto Fibria (hoje Suzano), multinacional que emprega um grande número de descendentes das pessoas escravizadas durante a criação da colônia.

Vasculhando os arquivos federais, Denise Bertschi encontrou listas e registros detalhados da administração colonial com o carimbo do vice-consulado do governo suíço. A artista então se inspira nesses arquivos para criar obras de arte. Neste caso, ela decidiu mandar bordar o carimbo da colônia e os arquivos do vice-cônsul da última fábrica de rendas de Saint-Gall, vestígio do que foi um florescente produto de exportação na Suíça do século XIX, inclusive para o Brasil. Os bordados ainda hoje são usados durante as celebrações do candomblé e testemunham essa história material e econômica. O bordado permitirá perceber um dos inventários elaborados pelo vice-cônsul gestor da colônia e, assim, tornar visível o que se tornou invisível, ao mesmo tempo em que vincula a história da Suíça à do Brasil.
A exploração colonial muda a paisagem suíça

Para seu doutorado, Denise Bertschi também foi em busca de vestígios da Colônia Leopoldina na paisagem suíça. Os arquivos federais e os do cantão de Neuchâtel indicam que os proprietários dos terrenos da colônia detinham o título de “cônsules”, o que comprova a proteção estatal de que se beneficiavam. Um deles, James-Ferdinand de Pury, mandou construir a “Villa de Pury” em Neuchâtel, graças à fortuna gerada pela colônia. Com a sua morte e a seu pedido, o edifício foi transformado em 1904 em Museu de Etnografia, função que ainda hoje ocupa.

O nome de outro empresário aparece nesses documentos: Auguste-Frédéric de Meuron. Enriquecido graças às plantações de tabaco escravistas da Bahia e do Rio de Janeiro, ele desempenha o papel fundamental de banqueiro e arranjador de famílias suíças que desejam criar novas plantações. Em 1849, converteu parte do seu capital colonial para construir a clínica Préfargier, no estado de Neuchâtel – um hospital psiquiátrico de última geração que ainda hoje desempenha essa função. “Esses são apenas dois exemplos”, explica Denise Bertschi. “Estes fatos podem mudar a nossa perspectiva sobre o ambiente construído e institucional da Suíça, em particular lembrando-nos de onde vem o capital investido para construir estes edifícios de prestígio e a serviço do aparelho estatal”, ressalta ela.